1 de abr. de 2013

Até os heróis têm limites

Desde que começou a trabalhar na Nike, em 1979, o CEO Mark Parker, de 56 anos, conviveu com os maiores atletas do mundo. Te­ve grandes satisfações, mas também pas­sou por maus bocados. Recentemente, precisou romper com dois campeões que arranharam a credibilidade da marca - o corredor sul-africano Oscar Pistorius, acusado de matar a namorada, e o ciclis­ta americano Lance Armstrong, réu con­fesso num esquema de doping. "Antes da escolha de um atleta, fazemos uma bate­lada de checagens. Mas são seres huma­nos que têm dramas e erram", diz. Embora reconheça que marketing é fun­damental, Parker afirma que o futuro da Nike depende mesmo é da criação de produtos ultrapersonalizados e com muita tecnologia embutida. Ele falou a VEJA em visita ao Rio de Janeiro.

 (foto: Newscom)



Recentemente, a Nike precisou suspen­der o patrocínio ao corredor sul-africano Oscar Pistorius, acusado de matar a na­morada. A imagem da empresa saiu arra­nhada?
 
É muito difícil mensurar a ex­tensão desse tipo de estrago. Sabemos que houve, sim, os que condenaram não só o atleta, mas também a marca. Outros discerniram bem as coisas. O fato é que não temos controle sobre todos os desdobramentos de crises ex­tremas como essa. Tentamos nos blin­dar contra situações assim o tempo to­do. Antes de tomarmos a decisão acerca do patrocínio de um atleta, realizamos uma batelada de checagens sobre ele e falamos com gente que o conhece bem. Foi o que fizemos com Pistorius. O que aconteceu depois foi algo trágico e absolutamente impossível de prever.



A campanha publicitária que apresenta­va Pistorius como "a bala no tambor do revólver" mostrou-se um erro brutal, mas ficou alguma lição?  
Quando cria­mos o anúncio, a imagem de Pistorius era associada à rapidez e à superação, e não à violência. Se soubéssemos o que sabemos hoje, obviamente não te­ríamos conduzido a história daquela forma.



O senhor costumava citar o ciclista Lan­ce Armstrong - que confessou ter se dopado durante boa parte de sua carrei­ra - como um bom exemplo. Foi difícil romper com ele?  
Sim, foi muito duro porque envolveu uma profunda decep­ção, para dizer o mínimo. Eu, que tam­bém pratico ciclismo, admirava Lance Armstrong. Já o tínhamos questionado antes, por diversas vezes, sobre as acusações de doping que pesavam contra ele. Lance sempre negou tudo enfaticamente.



Esses episódios fizeram a Nike repensar sua política de patrocínios?
 
Na verdade, não. Atletas são uma inesgotável e va­liosa fonte de inspiração. Isso não ape­nas para o marketing, mas também pa­ra a criação de produtos. Nas últimas décadas, patrocinamos milhares de es­portistas e desenvolvemos muitas ino­vações em parceria com eles. É algo que está em nosso DNA. Não vai mu­dar. É claro que tentamos fazer o me­lhor julgamento possível dos esportis­tas que se tomam porta-vozes de nossa marca. Mas é preciso lembrar que lida­mos com seres humanos - que têm seus dramas e erram. Por isso, incluí­mos nos contratos cláusulas que prote­gem os nossos interesses e não deixam dúvida: até para eles, os super-heróis do esporte, existem limites.



Entre as várias parcerias com grandes nomes do esporte seladas sob seu co­mando, qual trouxe mais resultados?  
A experiência com Ronaldo Fenômeno foi um divisor de águas, já que nos aju­dou a conhecer e a ingressar num mun­do do qual até então sabíamos muito pouco: o do futebol. Ronaldo nos for­neceu preciosas pistas para a criação de uma chuteira num momento em que ainda estávamos engatinhando nesse mercado, no início dos anos 90. Ele queria um calçado que protegesse os pés, mas fosse leve a ponto de passar a sensação de jogar descalço. Na época, era um conceito novo para nós e para o esporte. Durante o processo, estuda­mos com olhar de cientista a maneira como Ronaldo se movimentava. É um bom exemplo de como a demanda de um atleta genial pode nortear a inova­ção. Aquela chuteira é um de nossos grandes sucessos.



Como é lidar com o ego inflado e as idiossincrasias dos atletas que a Nike patrocina?
 
Eu comecei na empresa co­mo designer, em 1979, e passei boa parte da minha vida trabalhando dire­tamente com atletas na criação de pro­dutos. É tarefa difícil, sem dúvida, mas também muito interessante. Exige psicologia e até um quê de adivinho para decifrar a mente dessas estrelas. Esportistas de elite costumam alimen­tar expectativas bastante elevadas. Pas­samos um longo tempo tentando en­tender o que querem e do que preci­sam. Fazemos protótipos em série, que vão sendo descartados um a um, até que eles fiquem 100% satisfeitos. O visual também é importante. Atletas são vaidosos, gostam de olhar no espe­lho e pensar: eu me sinto mais veloz, mais forte, bonito e poderoso. Parece bobagem, mas isso também pode ajudar a melhorar o desempenho.



Qual é o mais exigente dos atletas com os quais o senhor convive hoje?  
Tiger Woods, que também se envolveu com escândalos, mas superou o problema. Ele costuma ser muito específico sobre o que gosta e o que quer. No início da parceria, ele nos contou que adorava quando ouvia um som especial no momento da tacada, um discreto ruído que só ele identificava. Em busca desse leve som, modificamos a textura da bola inúmeras vezes. Fize­mos nove protótipos até chegar àquele que proporcionava a musicalidade ideal aos ouvidos de Woods. A maioria das pessoas não veria nenhuma dife­rença entre cada uma daquelas bolas. Mas ele percebe.



O que esse tipo de experiência ensina sobre o consumidor comum? 
As pessoas estão cada vez mais exigentes e bus­cam produtos mais e mais personaliza­dos. Não importa se é um telefone, uma roupa ou um tênis. O caminho para inovar é radicalizar na customiza­ção. Num futuro não muito distante, algo como cinco ou sete anos, será possível colocar um modelo de seu pé no computador e projetar um tênis absolutamente sob medida para ele, levando em conta todas as suas parti­cularidades - isso em grande escala. Outro pilar fundamental sem o qual nenhuma companhia sobreviverá, é o investimento em tecnologias digitais que permitam às pessoas estar conecta­das o tempo todo. Há tempos percebe­mos que não era uma escolha ficar de fora disso e criamos produtos como o sensor que, instalado no tênis, envia à Internet, via celular, dados sobre o de­sempenho do corredor e a pulseira que conta os passos da pessoa



Esse tipo de produto permite formar um valioso banco de dados sobre hábitos e gostos. O que descobriram?  
Primeiro, que estamos vivendo níveis recordes de sedentarismo - um terreno sobre o qual queremos avançar, atraindo mais gente para o esporte e abrindo merca­do. Outra importante constatação é que o maior interesse em torno dos aplica­tivos não é competir com os amigos ou exibir um bom desempenho nas redes sociais - mas, sim, a motivação de fazer a pessoa batalhar consigo mesma, ten­tando vencer os próprios limites. Com o dispositivo digital, ela fica sabendo exatamente em que patamar está e aon­de precisa chegar.



Tamanha exposição na rede também não torna a empresa mais vulnerável a críticas?  
O diálogo entre empresas e consu­midores está ganhando vulto na web, e não há corno retroceder nem fugir dis­so. Esse é o mundo em que vivemos. Eu, particularmente, vejo essa mudan­ça com otimismo. Podemos tirar muito proveito da rede. A conversa com o consumidor fica mais específica, dirigi­da, próxima. Se de um lado somos alvo de críticas, também recebemos retor­nos valiosíssimos, que encurtam deci­sivamente o caminho para a inovação.



O senhor tem um exemplo?
 
Os usuários da pulseira que monitora o gasto de calorias em tempo real formaram uma ativa comunidade na rede. À medida que falam uns com os outros, eles vão indicando o que precisa ser melhora­do. Foi assim que soubemos de um problema no software que inflava a contagem de calorias de quem gesti­culava muito, embora passasse o dia inteiro sentado. Nas contas do apare­lho, podia acontecer de esses mais inertes terem um gasto calórico supe­rior ao daqueles que subiam vários lances de escada. Graças ao retorno que tivemos no ambiente on-line, fize­mos esse e muitos outros ajustes ne­cessários no software.



Em que medida o senhor acredita que a Copa do Mundo possa impulsionar o mercado esportivo? 
Numa estimativa conservadora, as vendas devem subir 30% como tem acontecido nas últimas Copas. Mas podem aumentar até mais. Falo isso porque em países como o Brasil os números têm disparado. Nos últimos três anos, o mercado brasileiro passou a ser um dos cinco maiores pa­ra a Nike, crescendo na casa dos dois dígitos - com taxas menores apenas do que as de chineses e indianos. Apostamos, como várias outras empresas, que o Brasil vai ditar cada vez mais tendências de moda e comporta­mento. Por isso, estamos trazendo ao país equipes de designers, pesquisado­res e produtores. O pendor natural pe­los esportes e o culto ao corpo são par­te da cultura local e um terreno pro­missor por onde avançar.



A Nike já foi acusada pela concorrência de praticar dumping no Brasil Isso não refreou seu ânimo de fazer negócios no país?  
Não existe nem nunca existiu dumping de nossa parte. O que há, na verdade, é uma sobretaxa exagerada so­bre nossos produtos. Temos procurado deixar claro que crescimento sustentá­vel só é possível com comércio livre e justo. Se o Brasil buscar uma política comercial que obedeça às leis locais, mas também seja coerente com as re­gras internacionais de livre-comércio, todos ganharão. Ternos conversado com o governo brasileiro frequentemente, e acho que estamos progredindo.



A direção da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) quer reavaliar o valor do contrato com a Nike, hoje de 35,5 mi­lhões de dólares por ano. O senhor está disposto a fazer alguma concessão?
 
A CBF acaba de eleger um novo presi­dente. É natural que reavalie os contra­tos em vigor e queira eventualmente renegociá-los. Faz parte do jogo. Mas, até agora, nada ficou decidido em rela­ção a isso.



A Nike foi alvo de denúncia de trabalho infantil no fim da década de 90. O que mudou desde então?  
Foi uma das épo­cas mais difíceis de toda a história da empresa. A crise que as denúncias de­sencadearam fez com que nos transfor­mássemos profundamente. Passamos da total ignorância sobre como nossos fornecedores trabalhavam para uma vi­gilância estrita. Ficou claro que não era mais possível não assumir responsabi­lidade sobre quem nos prestava servi­ço. Foi aí que criamos uma divisão de sustentabilidade corporativa, na qual há gente dedicada exclusivamente à inspeção das fábricas e dos fornecedo­res dos quais compramos. Não se trata apenas de estar do lado certo. Quem não atentar hoje para questões como essa acabará sucumbindo.



Fazer produtos sustentáveis não encarece a produção?  
A curto prazo, pode ser que sim. Ao longo do tempo, porém, a tendência é que ocorra justamente o contrário. Por exemplo: uma de nossas metas é reduzir em 15% o uso de água até 2015. Para chegarmos lá, investi­mos pesado em uma nova tecnologia de tingimento dos tecidos - a seco. Hoje, roupas desse tipo são mais caras, mas, quando essa tecnologia estiver funcionando em larga escala, tudo in­dica que fará diminuir significativa­mente o desperdício de recursos e o uso de mão de obra.



Iniciativas assim são um bom trunfo para o marketing?  
Elas ajudam, mas só se sustentam se fizerem realmente dife­rença. Em uma empresa grande e tão vigiada como a Nike, a divulgação de uma falsa imagem seria facilmente per­cebida. Se é para ser verde, tem de ser de verdade. E é bom para os negócios. Ao longo da nossa história, tivemos de nos reinventar várias vezes. Está acon­tecendo agora.



Fonte: Revista VEJA, edição impressa de 03 de Abril de 2013. Páginas Amarelas. Por Malu Gaspar.


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